sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Saudades do Brasil (obituário)

Fui dormir lendo um artigo sobre a permanência do autoritarismo militar na atual democracia brasileira. Enquanto eu lia, em outro país minha avó morreu.

Minha vó (1935-2012)

O outro país é o Brasil. Sempre foi. Drummond tem um verso exemplar sobre isso: "E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria". O Brasil é uma bobagem de proporções continentais, toda manhã as crianças da pré-escola são obrigadas a cantar o hino nacional antes de entrarem na sala de aula. A ativista guatemalteca Rigoberta Menchú afirma que nenhum país trata tão mal seus índios como o Brasil. Há algumas semanas, no Pará, fazendeiros queimaram viva uma criança indígena de 8 anos para espalhar o terror e seguir com o processo de colonização, que já dura cinco séculos e ainda encontra resistência. O Brasil é uma bobagem muito grande e muito perigosa.

"A boba" (1915/16), de Anita Malfatti

Minha avó, aos 8 anos de idade, nos anos 1940, passava fome no interior paulista. Me contava isso sempre, mas nunca com orgulho ou resignação. Eu, que nunca passei fome de verdade, só posso imaginar. Catava comida no lixo e toda a família sofria desnutrição. Umas irmãs mais velhas se safaram prostituindo-se, acho que mais por necessidade que por vocação. Um irmão mais velho trabalhava numa padaria. Minha avó dizia: "ele lá, fazendo pão, e a gente sem pão pra comer". E depois se surpreendia com a própria consciência: "eu pensava nessas coisas!".

Na minha criação de classe média, crescendo com medo de ladrão e amigo da faxineira, minha avó era a única janela aberta pra um mundo que eu não deveria ver. Este, acho, é um dos motivos que faziam com que ninguém levasse ela muito a sério - velha, boba, esclerosada. Mas nós sempre nos demos bem e ela me ensinou as coisas mais importantes que eu aprendi. "Todo dia", ela contava, "a gente passava na frente de um pomar de laranja. Mas as crianças diziam: não pode entrar lá, que o dono fica com uma espingarda esperando, e quem entra ele TCHUM!". Quer dizer então que, se não fosse a espingarda, a senhora ia lá e roubava? "Ah, acho que sim! Onde já se viu, um monte de laranja ali e a gente com uma fome..."

A Constituição de 1988, segundo o artigo que eu estava lendo ontem, é pra inglês (pra brasileiro) ver. Apesar de garantir uma série de direitos civis, ausentes da Constituição autoritária anterior (1967/1969), ela manteve incólumes - e muitas vezes ampliou - os poderes dos militares. Cito:

(...) quando os constituintes decidiram retirar a faculdade das Forças Armadas de serem garantes da lei e da ordem, o general Leônidas [Pires Gonçalves, ministro do Exército do governo Sarney] ameaçou interromper o processo constituinte. Os constituintes recuaram. No texto final, mantiveram, por meio do artigo 142, o poder soberano e constitucional das Forças Armadas de suspender o ordenamento jurídico sem precisar prestar contas a qualquer outra instância de poder; ou seja, os militares podem dar um golpe de Estado amparados por preceito constitucional.

Menina se recusa a cumprimentar o ditador Figueiredo
(foto de 1979)
Minha avó morta, a constitucionalidade do golpe. Hoje, no Brasil, 16 milhões de pessoas vivem na pobreza extrema. A informação escapa do peito. Em editorial de 2003, a Folha de São Paulo comparava Lula a João Goulart e dizia que "se o dique da legalidade um dia estiver prestes a se romper, será preciso reprimir duramente, em nome da democracia e da sobrevivência do próprio governo." Espingardas protegendo os laranjais. O ex-ministro e ainda genocida Delfim Netto é um dos principais apoiadores do governo de Dilma Rousseff, ex-torturada e atual presidenta. O Brasil é uma bagunça.

Num poema chamado "Hino Nacional" (não estaria nada mal ensiná-lo às crianças, mesmo as que estão na pré-escola), Drummond fala muito do Brasil. O poema está em Brejo das Almas, publicado em 1934, mesmo ano em que o golpista Getúlio Vargas foi eleito presidente por via indireta, e um ano antes de minha avó nascer. O livro abre com uma epígrafe irônica, onde uma notícia anuncia que Brejo das Almas é um município mineiro cuja economia está cada vez melhor. "Ultimamente", diz a notícia, do jornal A Pátria, "cogita-se da mudança do nome do município, que está cada vez mais próspero". (Obrigado, vó, por ter me ensinado a desconfiar das coisas). Assim Drummond termina seu hino nacional:


Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

O Brasil, visto do espaço.

7 comentários:

  1. Ai Marcos: força.
    Sinta-se abraçado daqui (você sabe que faz uma falta enorme nessas "terras bobas" aqui). E quanto ao blogue, uma coisa: é por essa e outras coisas que nós te amamos.
    Um beijo (e eu te devo um café na volta - não esqueci).

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  2. Lamento a morte de sua avó. Eu não conheci as minhas.

    Queria te falar do art. 142. Ele foi alterado em 1991 e não dá mais esse tipo de poder às forças armadas. Que texto é esse que você leu?

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    1. ei, breno. onde cê viu que o art. 142 foi mudado? no texto da constituição no site do planalto não tem nenhuma indicação. ó:

      http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm

      o ensaio que eu li tá naquele livro "o que resta da ditadura", da boitempo. é o segundo: "relações civil-militares: o legado autoritário da constituição brasileira de 1988", de jorge zaverucha. cito um trecho em que ele fala do art. 142:

      "O artigo 142 diz que as Forças Armadas 'destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem'. Mas, logicamente, como é possível se submeter e garantir algo simultaneamente?

      Lógica à parte, são os militares quem têm o poder constitucional de /garantir/ o funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário, a lei e a ordem quando deveria ser o reverso. Ou seja, as Forças Armadas são baluartes da lei e da ordem definidas por elas mesmas, não importando a opinião do presidente da República ou do Congresso Nacional. Portanto, cabe às Forças Armadas o poder soberano e constitucional de suspender a validade do ordenamento jurídico, colocando-se legalmente fora da lei."

      essa é a interpretação que o autor faz, e daí seguem exemplos do cercadinho militar ao governo civil até o governo lula (o livro é de 2010).

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  3. Meu querido amigo, sinto muito pela sua perda...
    Eu me lembrei dela, das vezes que voltamos do colégio e eu sem graça fui comer na sua casa. Ela fazia um bom macarrão, sabe...
    Um belo texto, a maneira como ocilou entre a história do Brasil e a sua, foi maravilhosa, e espero mesmo que mantenha esse blog tempo suficiente para que eu possa me embriagar de você, sempre...
    Fica bem e saiba que, mesmo longe, existem muitas pessoas solidárias à sua perda, que desejam tudo de bom e que siga firme em sua caminhada...
    Apesar de tudo, a vida tem que continuar.
    Saudades, querido amigo.

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  4. Mas "sob a autoridade suprema do Presidente da República".
    Se um golpe viesse, não seria militar. Claro, há militarismo na estrutura da sociedade; é uma cultura. Temos polícia militar, por exemplo. E pra todo mundo é uma coisa natural! Nos EUA, a polícia militar é a do exército. Só agora conseguimos uma Comissão da Verdade. Todo mundo de rabo preso, com medo.

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  5. uma outra coisa... é o que você faz re-viver quando escreve. ~o homem é o animal pelo qual o ´não´vem ao mundo" - a frase é do sartre, quem me disse foi o gus. os textos aqui fazem re-trazer aos olhos, ouvidos, pele, o que a gente mesmo "deveria esquecer". mas não esquece. a palavra guarda quem nem o xorume do passado, como citou a sarlo. o xorume do passado é remédio, é elixir.
    foi bom ler esses textos.
    um beijo.

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