segunda-feira, 9 de abril de 2012

Silhuetaço*




O Silhuetaço foi um movimento artístico argentino que se iniciou em setembro de 1983, a partir da iniciativa dos artistas Rodolfo Aguerreberry, Julio Flores e Guillermo Kexe. Junto a alguns movimentos sociais organizados, como as Abuelas de Plaza de Mayo e as Madres de Plaza de Mayo, realizaram um dos protestos mais eficazes e perturbadores contra os horrores da ditadura militar argentina (1976-1983).

Naquele mês esses artistas junto a outras pessoas se reuniram para tornar mais visíveis os assassinatos e desaparições ocorridas durante o regime militar. A ditadura militar argentina foi responsável pela desaparição de 30 mil pessoas. A intenção destes artistas era tornar presentes as ausências desses trinta mil.

O lugar escolhido foram as paredes de prédios na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, lugar em que ocorreram grandes mobilizações políticas e que testemunhou os mais importantes acontecimentos políticos do país.

A técnica era simples. Pessoas deitavam-se no chão, sobre papéis, para que suas silhuetas fossem contornadas. Assim os desenhos eram produzidos em escala natural. Desse modo os papéis eram colados nas paredes. E um a um passou a evocar e presença de cada um dos ausentes, desaparecidos pos razões políticas.



Essa intervenção causou muitas reações. A cada manhã algo novo era acrescentado às silhuetas. Durante a noite algumas silhuetas receberam corações. Outras receberam nomes. As várias intervenções da população demonstrou como a iniciativa conseguiu integrar com sucesso as ausências dos desaparecidos à rotina e à memória argentina.

A imprensa relatou que alguns pedestres se sentiam observados pelas silhuetas. Relatou um ambiente perturbador, descreveu a desconfiança e o desconforto dos policiais.

E justamente havia algo de diferente na manhã em que a Praça de Mayo acordou com a presença física dos desaparecidos, desenhados em papel. Um capítulo da memória havia sido desenhado coletivamente. Alguns parágrafos de uma história de reparação e justiça estariam por ser escritos.

Iniciativas como essas promovem importantes e múltiplas discussões sobre direitos humanos em contextos ditatoriais: discute-se sobre os genocídios de Estado, sobre a materialidade da memória, sobre os direitos dos sobreviventes, sobre os traumas de famílias e de comunidades, sobre o julgamento de torturadores e assassinos.

Intervenções como o Silhuetaço certamente serão úteis para fazer com que o Brasil possa começar a lidar com seus traumas e começar formular sua memória, como um processo. Assim talvez os brasileiros abandonem o silêncio e possam pedir por justiça, este grito tão abafado pelo conto de fadas da "ditabranda".

* escrevo agradecendo especialmente a Jorge Guzman, me me fez escutar pela primeira vez sobre o Siluetazo :)



Fontes:

http://territorioteatral.org.ar/html.2/articulos/pdf/n2_01.pdf
http://pajarodechina.blogspot.com.ar/2009/11/en-el-lugar-de-los-demas.html
http://www.cambio.com.co/culturacambio/814/ARTICULO-WEB-NOTA_INTERIOR_CAMBIO-4793864.html

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Palmares, Canudos, Pinheirinho

O eterno retorno.

Um amigo diz que a história do Brasil é muito chata. Ele é argentino e revolucionário e entende das coisas. Me fala do México, da Colômbia, de Cuba, óbvio, mesmo do Chile. Uma das coisas que mais me impressionou quando comecei a ler sobre a Argentina foi o sangue que corria solto por aqui no século XIX, o país em constante guerra civil. Nos textos românticos daqui não tem sabiá cantando nem índia de lábios de mel, muito pelo contrário. Há ódio, violações, a literatura sendo usada como arma, mais ou menos parecido com o que aconteceu durante as independências africanas no século XX. E o Brasil?

O Brasil não tem conflitos, não tem guerras. "Há 140 anos em paz com seus vizinhos", a Dilma se gaba na assembleia da ONU. A Polícia Militar diz pelo twitter que a "reintegração de posse" do Pinheirinho "aconteceu pacificamente". Até agora são três mortos reivindicados pelxs moradorxs, que denunciam que a prefeitura de São José dos Campos desapareceu com os corpos para que não contassem nas estatísticas.

"... tranquilo..."
Que história é essa que a gente está contando? Na escola, eu aprendi que a colonização foi lenta e tranquila, a independência foi rápida e tranquila, a proclamação da República foi engraçada - e tranquila - e os "anos de chumbo", ah, esses sim foram ruins... pero no mucho. Logo veio o fim da ditadura, com a grande festa da democracia brasileira, a campanha Diretas Já!, o impeachment do Collor. E tudo, mais uma vez, tranquilo.

Mas tem três pessoas mortas. Uma delas é uma criança de três ou quatro anos, perfurada por uma bala de borracha. A nossa polícia é delicada: mata com balas macias.

Essas três pessoas mortas se multiplicam: no século 18, leio um relato, o capitão Bartolomeu Bueno do Prado, especializado na guerra contra os quilombos, volta de uma batalha com três mil pares de orelhas de negros guardadas nos lombos dos cavalos. Por qualquer caminho que você entre na história do Brasil, um massacre sempre vai te pegar de assalto. Em Palmares, dez mil foram mortos degolados, jogados de abismos ou vendidos como escravos.

Palmares foi a maior rebelião de escravos já vista, a mais duradoura. Foi uma ocupação que durou mais de um século e que criou, na América que os portugueses tentavam criar, um Estado autônomo, à semelhança de reinos africanos, e que tinha a área equivalente a um terço do tamanho de Portugal.

A conquista portuguesa da América tinha como base econômica a monocultura. Na Ouro Preto do auge da mineração, por exemplo, os ricaços do ouro muitas vezes não tinham o que comer, sendo obrigados a mastigar ratos e outros bichos rasteiros; isso porque não se cultivava comida, não havia subsistência. Como os desertos verdes de soja, hoje em dia, a relação com a terra era apenas predatória. O mesmo nos latifúndios açucareiros, "estruturas do desperdício" que empobreceram os ricos solos do nordeste brasileiro e que obrigam a importar comida que bem poderia ser plantada por lá.

(Leio essas coisas no As veias abertas da América Latina, do Eduardo Galeano.)

Pois bem: em plena época dos desertos verdes da cana-de-açúcar, Palmares era o único lugar do Brasil onde se desenvolvia o policultivo. O perigo que Palmares representava para o governo não era só a rebelião escravista, mas sua capacidade de autogestão. Para destruir essa comunidade, a coroa portuguesa teve que juntar o maior exército de todo o período colonial. O povo, unido, precisa ser vencido. E, no Brasil, geralmente é.

A Globo também diz que foi pacífico, mas a repórter
usa colete à prova de balas.
Se nossas revoluções são maiores, a repressão tem de ser desmedida. Pinheirinho, por sua vez, é a maior ocupação urbana da América Latina e foi destruída com helicópteros, bombas, balas macias que matam crianças e depois desaparecem com os corpos.

Palmares, Canudos, a história do Brasil é chata porque é monótona, invariavelmente se repete: o poder central sabe que é fácil matar uma ideia - é só matar as pessoas que têm as ideias, destruir as casas onde elas dormem, comem, amam e fazem assembleias. Pinheirinho resiste?

O que está acontecendo é responsabilidade de todxs nós. Precisamos pensar juntxs o que fazer - e fazer juntxs. Há vários protestos acontecendo no Brasil, organizados por partidos políticos (ao menos pelo PSOL e o PSTU, que eu saiba) e por movimentos sociais (como o MTST). Além de ir a esses protestos, a gente pode também assinar esta moção de apoio e esta petição pública e enviar emails para governos municipais, estaduais e federal exigindo o fim dessa barbárie. Que mais?

Essas ações dificilmente vão assegurar aos moradores do bairro que voltem às suas casas, algumas já demolidas. Mas podem ser úteis pra que essas pessoas recebam tratamento digno e tenham seus direitos assegurados, e para que os responsáveis pelo massacre sejam punidos. Mas a História, essa só muda se a gente começar a se juntar.



sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Saudades do Brasil (obituário)

Fui dormir lendo um artigo sobre a permanência do autoritarismo militar na atual democracia brasileira. Enquanto eu lia, em outro país minha avó morreu.

Minha vó (1935-2012)

O outro país é o Brasil. Sempre foi. Drummond tem um verso exemplar sobre isso: "E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria". O Brasil é uma bobagem de proporções continentais, toda manhã as crianças da pré-escola são obrigadas a cantar o hino nacional antes de entrarem na sala de aula. A ativista guatemalteca Rigoberta Menchú afirma que nenhum país trata tão mal seus índios como o Brasil. Há algumas semanas, no Pará, fazendeiros queimaram viva uma criança indígena de 8 anos para espalhar o terror e seguir com o processo de colonização, que já dura cinco séculos e ainda encontra resistência. O Brasil é uma bobagem muito grande e muito perigosa.

"A boba" (1915/16), de Anita Malfatti

Minha avó, aos 8 anos de idade, nos anos 1940, passava fome no interior paulista. Me contava isso sempre, mas nunca com orgulho ou resignação. Eu, que nunca passei fome de verdade, só posso imaginar. Catava comida no lixo e toda a família sofria desnutrição. Umas irmãs mais velhas se safaram prostituindo-se, acho que mais por necessidade que por vocação. Um irmão mais velho trabalhava numa padaria. Minha avó dizia: "ele lá, fazendo pão, e a gente sem pão pra comer". E depois se surpreendia com a própria consciência: "eu pensava nessas coisas!".

Na minha criação de classe média, crescendo com medo de ladrão e amigo da faxineira, minha avó era a única janela aberta pra um mundo que eu não deveria ver. Este, acho, é um dos motivos que faziam com que ninguém levasse ela muito a sério - velha, boba, esclerosada. Mas nós sempre nos demos bem e ela me ensinou as coisas mais importantes que eu aprendi. "Todo dia", ela contava, "a gente passava na frente de um pomar de laranja. Mas as crianças diziam: não pode entrar lá, que o dono fica com uma espingarda esperando, e quem entra ele TCHUM!". Quer dizer então que, se não fosse a espingarda, a senhora ia lá e roubava? "Ah, acho que sim! Onde já se viu, um monte de laranja ali e a gente com uma fome..."

A Constituição de 1988, segundo o artigo que eu estava lendo ontem, é pra inglês (pra brasileiro) ver. Apesar de garantir uma série de direitos civis, ausentes da Constituição autoritária anterior (1967/1969), ela manteve incólumes - e muitas vezes ampliou - os poderes dos militares. Cito:

(...) quando os constituintes decidiram retirar a faculdade das Forças Armadas de serem garantes da lei e da ordem, o general Leônidas [Pires Gonçalves, ministro do Exército do governo Sarney] ameaçou interromper o processo constituinte. Os constituintes recuaram. No texto final, mantiveram, por meio do artigo 142, o poder soberano e constitucional das Forças Armadas de suspender o ordenamento jurídico sem precisar prestar contas a qualquer outra instância de poder; ou seja, os militares podem dar um golpe de Estado amparados por preceito constitucional.

Menina se recusa a cumprimentar o ditador Figueiredo
(foto de 1979)
Minha avó morta, a constitucionalidade do golpe. Hoje, no Brasil, 16 milhões de pessoas vivem na pobreza extrema. A informação escapa do peito. Em editorial de 2003, a Folha de São Paulo comparava Lula a João Goulart e dizia que "se o dique da legalidade um dia estiver prestes a se romper, será preciso reprimir duramente, em nome da democracia e da sobrevivência do próprio governo." Espingardas protegendo os laranjais. O ex-ministro e ainda genocida Delfim Netto é um dos principais apoiadores do governo de Dilma Rousseff, ex-torturada e atual presidenta. O Brasil é uma bagunça.

Num poema chamado "Hino Nacional" (não estaria nada mal ensiná-lo às crianças, mesmo as que estão na pré-escola), Drummond fala muito do Brasil. O poema está em Brejo das Almas, publicado em 1934, mesmo ano em que o golpista Getúlio Vargas foi eleito presidente por via indireta, e um ano antes de minha avó nascer. O livro abre com uma epígrafe irônica, onde uma notícia anuncia que Brejo das Almas é um município mineiro cuja economia está cada vez melhor. "Ultimamente", diz a notícia, do jornal A Pátria, "cogita-se da mudança do nome do município, que está cada vez mais próspero". (Obrigado, vó, por ter me ensinado a desconfiar das coisas). Assim Drummond termina seu hino nacional:


Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

O Brasil, visto do espaço.